Informações
Descrição
A tradição de doces finos e a tradição de doces coloniais se desenvolveu ao longo século XIX na região hoje identificada pelo município de Pelotas e os municípios de Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo e Turuçu, que integravam a Antiga Pelotas. O surgimento dessas tradições doceiras relaciona-se com a formação da sociedade local cuja principal atividade econômica era a produção de charque, a carne de gado salgada e curtida ao sol, alimento dos escravizados no Brasil e no Caribe. À comercialização do charque garantiu à região de Pelotas o abastecimento de açúcar vindo dos engenhos do Nordeste brasileiro. Foi na dinâmica do sal e do açúcar que o fazer doceiro se consolidou como tradição, expandindo-se como ofício a partir da decadência da atividade charqueadora. A tradição de doces finos ou doces de bandeja se desenvolveu no espaço urbano de Pelotas, nas casas de famílias abastadas, tendo como uma de suas referências a doçaria portuguesa baseada no uso de açúcar, ovos e amêndoas aos quais foram acrescidos o queijo, as nozes, o coco, o damasco e as ameixas secas. Para esse segmento social, o doce era um importante elemento de sociabilidade e símbolo de refinamento, presente nas festas familiares e nas cerimonias religiosas. Com a crise da produção de charque, senhoras da elite e suas cozinheiras, em sua maioria trabalhadoras negras escravizadas e suas descendentes, passaram a produzir doces para banquetes e para venda nas portas das igrejas, nas ruas e nas praças da cidade. O saber doceiro transmitia-se no âmbito estritamente doméstico, entre familiares, agregadas e empregadas, algumas das quais se tornaram banqueteiras. Esse aprendizado não se restringia à aquisição de habilidades e à reprodução de receitas; as boas doceiras eram também capazes de inovar, criando doces e combinações. Essas práticas ganharam as ruas, ocuparam os cafés, teatros e confeitarias, sendo inseridas no cotidiano com significativa expansão. Por meio de maior divulgação e transmissão do saber, mulheres e famílias de outros segmentos sociais tornaram-se doceiras. As formas de comercialização se diversificaram entre a produção doméstica, feiras, lojas especializadas, quiosques, carrocinhas, ambulantes, além de eventos regulares. Os sentidos atribuídos aos doces, bem como sua relevância social, ampliaram-se. Nas cozinhas das casas de religiões de matriz africana, os doces são feitos para oferenda às divindades em busca da obtenção de “doçura na vida”. Desse modo, os terreiros tornaram-se espaços de vperpetuação do saber doceiro, que desempenha importante papel na comunicação com o sagrado. A tradição de doces coloniais ou doces de frutas desenvolveu-se mais fortemente na zona rural da Antiga Pelotas, entre famílias de imigrantes europeus (franceses, portugueses, italianos, alemães, pomeranos, dentre outros) que se fixaram na Serra dos Tapes, em terras vendidas por charqueadores a partir do loteamento de suas chácaras. As colônias eram pequenas propriedades dedicadas à horticultura e à fruticultura, em especial a do pêssego, que foi amplamente expandida na região. Logo, os doces produzidos para consumo familiar — as “tachadas' de pêssego ou de figo, os cristalizados, as frutas em calda, os glaceados e as passas de pêssego ou maçã - passaram a ser vendidos como “produtos da colônia' aos moradores das cidades próximas e de outros estados. À tradição de doces coloniais se configurou como parte de um modo de vida em que certas técnicas agrícolas e práticas alimentares se associam e são produzidas e reproduzidas por meio de relações de sociabilidade centradas nos vínculos familiares, de vizinhança e compadrio. Embora a produção doceira tenha se diversificado, havendo na região empresas semi-industriais e algumas indústrias (quase sempre de caráter familiar), os processos inteiramente artesanais permanecem vivos, praticados em inúmeros empreendimentos de pequeno porte, em geral anexos às casas das famílias doceiras, como ocorre em Morro Redondo. Para essas famílias, os modos de fazer — que envolvem técnicas manuais, o uso de utensílios herdados, como o tacho de cobre, a colher de pau e relações de trabalho específicas, como secar a passa de pêssego ao sol e outras, que seguem a lógica da sociabilidade local - fundamentam a tradição doceira e sua importância para a identidade e a memória familiar e coletiva. Nesse contexto, os doces não se destinam exclusivamente à venda, mas fazem parte da alimentação cotidiana e podem ser presenteados e compartilhados em eventos coletivos. Em ambas tradições, em especial na tradição de doces coloniais, é notável a articulação materialidade/imaterialidade, pois os utensílios, bem como as técnicas utilizadas, não são simples ferramentas ou “sequências produtivas”, mas integram modos de vida e têm valor destacado na sua continuidade. Conforme descrito, o fazer doceiro — que hoje se encontra disseminado em boa parte da metade sul do estado — teve na região de Pelotas e Antiga Pelotas um desenvolvimento peculiar, constituindo duas tradições bem definidas, que se entrelaçam e a singularizaram como “terra do doce”. Tais tradições doceiras acompanharam a constituição da sociedade local, bem como expressam mudanças culturais e sociais vivenciadas no tempo presente. Esta descrição corresponde à síntese do conteúdo do processo administrativo nº 01450.016835/2009-92 e seus anexos e apensos, no qual se encontra reunido um amplo conhecimento sobre esses Saberes, contido em documentos textuais, bibliográficos e audiovisuais. O presente Registro está de acordo com a decisão proferida na 88º reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, realizada no dia 15 de maio de 2018.
Data de Registro
maio 15, 2018
Abrangência do registro
local
Território já identificado
Pelotas, Morro Redondo, Turuçu, Capão do Leão e Arroio do Padre (RS)
Livro de Registro
Instituições parceiras
UFPEL
Documentos
Anuência para registro de bem cultural - Tradicoes Doceiras da Regiao de Pelotas e Antiga Pelotas | Pedido para registro de bem cultural - Tradicoes Doceiras da Regiao de Pelotas e Antiga Pelotas | Aviso no Diário Oficial da União - Tradicoes Doceiras da Regiao de Pelotas e Antiga Pelotas | Ata de Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural (Registro) - Tradições Doceiras da Região de Pelotas e Antiga Pelotas | Certidão de registro de bem cultural - Tradicoes Doceiras da Regiao de Pelotas e Antiga Pelotas | Dossiê de Registro - Tradicoes Doceiras da Regiao de Pelotas e Antiga Pelotas | Parecer Técnico de Registro - Tradicoes Doceiras da Regiao de Pelotas e Antiga Pelotas | Parecer do Conselho Consultivo - Tradicoes Doceiras da Regiao de Pelotas e Antiga Pelotas